A Apple não compra jornalistas para falarem bem do iPhone

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Os novos iPhones venderam, segundo a Apple, 10 milhões de unidades nos primeiros três dias. As lojas nos 10 países que começaram as vendas viram filas sem precedentes – o que sugere que, se houvesse estoque, esse número poderia ser muito maior. Tudo bem achar loucura ficar numa fila dessas. A pressa, o preço e as horas em pé dificilmente podem ser racionalmente justificadas. Mas não há dúvida de que a Apple produziu um belíssimo smartphone, e quem comprou um deve estar feliz (ao menos por conseguir revender com um bom lucro).

Além de sucesso de público, o iPhone é unanimidade nos sites que cobrem tecnologia. Depois de uma semana usando o aparelho, o Verge deu nota 9 (a maior para um smartphone), David Pogue lá no Yahoo americano diz que o iPhone 6 é "magrinho, sexy, com uma câmera matadora", o New York Times fala que não é o fato de ele ter um formato grande como os outros, mas "o que está dentro, que o coloca na frente dos rivais". E por aí vai. Abra basicamente qualquer site que fala do smartphone e veja elogios rasgados.

E, nesses mesmos sites, se você rolar até o fim da página para ler os comentários dessas resenhas, lerá variações da mesma frase:

"Quanto a Apple está pagando para vocês falarem bem assim?"

É um tipo de comentário cretino, que pode mostrar algumas coisas: ou ignorância em como funciona o jornalismo, ou má-fé, ou ironia agressiva, ou falta de caráter projetada em outros ou, mais provavelmente, um pouco de cada.

Em primeiro lugar, é uma acusação gravíssima. Falar que a pessoa recebeu uma grana por fora (e não revelou) para falar bem de algo é dizer que o jornalista é um canalha desonesto, que está desrespeitando alguns dos princípios mais básicos da profissão; que está colocando os interesses de alguém que paga acima do compromisso com os leitores. Fazendo isso ele estaria prejudicando quem o lê, falando bem de algo que não mereceria elogios.

Para fazer uma analogia de quão ultrajante é isso, experimente, da próxima vez que for ao médico perguntar a ele quanto que está recebendo do laboratório para te receitar e falar bem de um medicamento "inferior".

E antes que você corra para os comentários: há casos de médicos que ganharam, sim, para receitar mais um remédio em detrimento do outro (não em dinheiro vivo, mas em mimos como viagens patrocinadas por laboratórios); assim como há casos históricos de juízes que foram comprados para mudar o resultado de uma partida. Então, pela mesma lógica, deve haver jornalistas que tiveram a opinião comprada de alguma forma. Em tecnologia, assunto que cubro há 10 anos, particularmente, não conheço um único. Especialmente pela Apple, que investe quase nada em "melhorar a relação com os jornalistas" (outras fabricantes pagam viagens para cobrir lançamentos, por exemplo). Mas digamos que isso aconteça. Será que caras que estão fazendo isso há mais de década sobreviveriam no mercado, continuariam sendo influentes, aceitando suborno?

O grande problema, pra mim, é a primeira reação da pessoa ao ver uma matéria elogiosa ser "a opinião foi comprada". É como o cara que vê o árbitro errando em uma partida de futebol e pensa, com certeza, que o jogo foi "comprado". A pessoa que acha isso vive em um mundo cheio de conspirações e interesses ocultos, onde tudo que vai contra o que ela pensa ou gosta pode ser explicado por algo que ela também despreza (ao menos em discurso): corrupção. Há gente que fala bem do governo e é paga para isso? Não tenho dúvida. Mas pode ter certeza que a maioria esmagadora o faz por convicções, assim como os médicos e árbitros de futebol. Mas, para quem vê o mundo cheio de conspiradores e illuminatis, sempre será alguém "pago". O fato de a pessoa achar que essa é a explicação mais provável também mostra, para mim, uma falha de caráter dela: no lugar do jornalista, se uma fabricante oferecesse o dinheiro, ele aceitaria, por achar que é "parte do jogo". 

Mas voltando ao caso da Apple. Você pode "acusar" o jornalista que fez a resenha de parcialidade. E provavelmente não estará de todo errado. A imparcialidade não existe e todo jornalista, especialmente os que cobrem produtos de consumo (como carros e tecnologia) têm suas preferências pessoais. E, se você for a uma feira internacional de tecnologia verá que a maioria usa MacBooks e iPhones. 

Então, se no dia-a-dia essas pessoas (eu incluso) preferem usar um produto da Apple, é possível esperar que isso contamine o seu julgamento objetivo quando escrever um review. Mas, e isso é importante, os melhores colocam as preferências de lado, assim como os bons cronistas esportivos. Se a imparcialidade é só uma ideia, a objetividade, de focar nos aspectos que estão fora das preferências pessoas, é um norte e deve estar presente. Importante: quando falo "jornalista" descrevo todo mundo que está desempenhando a função de levar informação de forma sistematizada ao público, diplomado ou não.

Ademais, no jornalismo de tecnologia não há tanto o compromisso com uma análise fria. "A tela é incrível", "a velocidade é absurda", "a fabricante atendeu as nossas preces", "as linhas são sexy" e etc são coisas comuns. A lógica de escrever um texto assim, com elogios e críticas bem claras, até divertidas, é simples: os sites que fazem isso querem imitar o seu amigo que entende de tecnologia. Aquele que você busca quando precisa do conselho "e aí, devo comprar isso?". Seu amigo não vai falar "olha, o processador é dual Core porém com um bom desempenho no Sunspider". Ele vai dizer que preferiu este ou aquele, por essas e aquelas razões, e vai caprichar nos adjetivos. Isso me parece mais honesto, e não o contrário.

O público não pode ser tratado nem como idiota – e cabe a quem escreve uma análise saber que seus leitores podem ter prioridades diferentes – nem como totalmente conhecedor de tecnologia. Vomitar especificações, isoladas, não ajuda muita gente a realizar uma compra mais informada, o que é o objetivo fundamental desses sites. Eu particularmente gosto da pegada do Wirecutter, que fala que o "iPhone 6 é o melhor smartphone para a maior parte das pessoas". As principais justificativas: os seus donos são os mais satisfeitos e conseguem fazer muito sem muito esforço. Parece um bom critério.   

Bem, desculpem o desabafo, mas é que todo ano, nessa época, é a mesma coisa. Tenho visto muitos colegas perdendo a paciência, ou tomando cuidados para não ser muito elogioso ao iPhone com medo da revolta na área de comentários. Há critérios indiscutivelmente objetivos para afirmar isso: da qualidade da tela ao desempenho dele navegando, à câmera. Tudo indica que o bicho é realmente muito bom, por que não falar isso? Com um produto absolutamente vencedor como esse, a Apple deveria ser muito burra ou pouco confiante  (ela não é qualquer coisa dessas) para precisar desembolsar algo. Ela não precisa.

Ler ao final de uma resenha, em que você tentou ao máximo ser criterioso, que "já esperava porque é paga-pau da Apple" é broxante, mas faz parte do jogo. Isso é uma opinião do leitor e temos de conviver com isso (e, se não for exceção e vier de gente correta, verificar se há razão nela). Mas jogar um "você é pago" é outra história. Uma coisa é a percepção de viés, outra é acusação de desvio ético. É significativamente diferente. Não faça isso. E se, mesmo com tudo isso escrito, você ainda têm certeza que um site X é pago pela Apple e segue leitor, você, meu amigo, está perdendo o seu tempo.

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